Se existe na Terra um paraíso para os cães chama-se Telavive.
Tal como o pensamento judaico (pelo nome do Rabbi Yochanan, nos princípios da Era Talmúdica) advoga a existência de uma Jerusalém celeste e outra terrena, duas cidades em espelho que um dia se reunirão, não tenho dúvidas que para os canídeos a terra prometida fica aqui, na "cidade branca", na "cidade que nunca dorme", na cidade dirigida por Ron Huldai. Uma cidade ideal, mas muito real, que em muito se assemelha ao que seria o Éden do Rex, da Lassie, do Snoopy e da Laika.
Nunca como aqui vi, e eu sou um assumido "dog lover" e orgulhoso "dog owner", os cães serem tão bem tratados, tão integrados, tão respeitados, tão felizes. Nunca vi, como aqui, cães a sorrir tanto. Na verdade acho que nunca vi tantos cães numa mesma cidade: se a cidade nunca dorme, os cães e os donos também não. Dia e noite, em todo o lado, nas praias, nos restaurantes, nos supermercados, nos bares, em todas as ruas, há cães, cães com donos, cães felizes com donos.
Aqui os cães têm definitivamente um estatuto e a prova são as dezenas de lugares que lhes são dedicados. E não falo só do facto do Boulevard Rothschild às vezes mais parecer uma parada do Clube de Canicultura, falo duma praia onde dezenas de cães podem nadar e brincar à vontade (Chof HaClavim em hebraico, a norte da famosa Hilton Beach), do parque Gan Meir no centro da cidade, bem como doutros numerosos parques onde cães e donos se dedicam ao aprofundamento desta relação milenar. Tudo isto sem contar também com a profusão de lojas de animais e veterinários 24/7 (sendo que aqui quase tudo é 24/7). Para mais, a câmara de Telavive (e por isso mencionei o "mayor" Huldai) instalou por toda a cidade dispensadores de sacos de plástico para que os cidadãos ajudem a manter a cidade livre dos dejectos caninos. E, ao contrário do que acontece em Lisboa, funcionam e são regularmente renovados.
Claro que este mar de rosas confirma o estatuto de Telavive enquanto "bolha" dentro de uma região particularmente problemática. E este estado de excepção aplicar-se-á não só à economia, aos costumes e à segurança, mas também aos animais, fazendo fé nas queixas das diversas associações que se dedicam à sua proteção em todo o território israelita.
E mesmo dentro de portas o problema dos gatos vadios (um por cada dez habitantes em Telavive) continua a dar dores de cabeça às autoridades, aos activistas e aos amantes dos felinos em geral. Ainda assim muitos particulares e associações dedicam o seu tempo e o seu dinheiro a deixar diariamente, por toda a cidade, montinhos de ração para alimentar os inúmeros gatos esfomeados, que muitos defendem que pertencem às ruas (e portanto à polis) e que por isso devem ser protegidos.
Mas ainda assim, reitero que nesta cidade se respira um ambiente realmente celestial no que diz respeito à joie de vivre dos cães. É também verdade que o Judaísmo proíbe categoricamente a crueldade para com os animais, ideia bem expressa no ensinamento "tsa'ar ba'alei chayim", o mandato bíblico para não causar "dor a qualquer criatura viva". Ainda que nem sempre assim se processe na realidade, nalguns casos o Judaísmo dá aos animais o mesmo estatuto dos humanos enquanto seres sensitivos. É aliás de origem judaica um dos meus "heróis" nesta matéria, o filosofo australiano Peter Singer, frequente "inimigo" das políticas do governo israelita mas sempre defensor dos direitos dos animais e muito crítico do que ele denomina de "especismo": a discriminação contra certos seres baseada apenas no facto de estes pertencerem a uma dada espécie. Singer, que neste ponto contraria fortemente a sua herança religiosa, considera que todos os seres que são capazes de sentir e sofrer devem ter os seus interesses considerados de forma igualitária.
Claro que não há ilusões que a "bolha" não poderia ser mais secular, sem nunca deixar de ser judaica e, no que diz respeito aos cães, esta dicotomia é paradigmática.
Binarismos à parte, passear nesta cidade é um festim para quem gosta de cães. Mais que uma cidade dog-friendly, Telavive é a verdadeira Cinopolis. Na Terra e no Céu.
Pedro Penim
Telavive, 26 de Julho de 2012