Uns quilómetros para lá do Estado de Israel há um território tão interessante como este. Alguns dizem que, na verdade, o território é o mesmo. Alguns chamam-lhe também Israel, ou a Terra de Israel, outros chamam-lhe West Bank, designação mais secular e puramente geográfica que toma em conta a posição deste território em relação ao rio Jordão. Uma parte do mundo chama-lhe Palestina quando inclui também a Faixa de Gaza. Em Portugal é comum a distinção Cisjordânia. Mandato Britânico para a Palestina foi usado em tempos para toda a região, incluindo o que é hoje o território israelita, mas os tempos mudaram e o Mandato dividiu-se. Judeia e Samaria é um nome também comum, polémico para uns, divino para outros e ainda administrativo para aqueloutros. Outras designações, que mudam consoante a época, a ideologia e a parcela exacta de território a que nos queremos referir, incluem os nomes Canãa, Zion, Syria Palæstina, Síria do Sul, Jund Filastin e até, imagine-se, Ultramar. Aqui, muitas vezes, e creio que numa tentativa (gorada) de não ferir quaisquer susceptibilidades, chamam-lhe apenas "os territórios".
Ora os "territórios" são a "espada de Dâmocles" para muitos israelitas, a "pedra-de-toque" para se compreender cabalmente esta região, o "leito de Procrusto", o "pomo da discórdia", um "trabalho de Sísifo" cuja resolução vai ficando para as "calendas gregas", entre milhares de outras expressões que poderia encontrar para definir um lugar (makom, em hebraico) maior que a própria vida, que tem na verdade vida própria.
Fui isso mesmo testemunhar numa breve viagem até à cidade de Jenin que, continuando na senda das designações, é a "cidade dos mártires" para uns e "berço de terroristas" para outros, herança pesada das duas mortíferas Intifadas.
Saberão alguns que em Jenin existe um famoso teatro que opera dentro do campo de refugiados e que advoga o início de uma terceira Intifada. Nas palavras do seu fundador Juliano Mer-Khamis, recentemente assassinado: "uma Intifada cultural, com poesia, música, teatro..."
Talvez estas palavras possam ser lidas com desdém, talvez se possa dizer que são ingénuas. Juliano Mer-Khamis, actor e activista israelita filho de mãe judia e pai árabe, já não está cá para se defender nem para fazer valer o projecto que criou com tanta convicção inspirado pelo trabalho levado a cabo pela sua mãe Arna Mer com as crianças de Jenin e ao qual chamou Freedom Theatre of Jenin. O trabalho tem sido continuado com o apoio do co-fundador Zakaria Zubeidi (recentemente preso mas já libertado pela Autoridade Palestiniana), ex-comandante das sangrentas Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa e sob a direcção artística de Nabil Al-Raee, encenador e actor (recentemente preso mas já libertado pelo Exército de Israel). Tudo isto parece extraordinário e irreal quando comparo com a minha experiência de agente teatral em Portugal, e penso como uma profissão pode ter um perfil e desafios tão diametralmente opostos (entre muitos comuns) quando desempenhada em partes diversas do mundo. O Freedom Theatre de Jenin tem como objectivos a formação teatral de jovens e profissionais da região e a criação de espectáculos não só para a comunidade local mas também para digressões internacionais frequentes, tudo isto tendo sempre como fundo a resistência cultural à ocupação israelita.
Era esse o sonho de Mer-Khamis, sonhado para uma cidade desoladora, onde dificilmente se vê o futuro e onde dificilmente se vive. Quando se sente, como eu senti ao chegar a Ramallah, finalmente num lugar normalizado, percebe-se a dimensão do que ficou para trás: uma lixeira a céu aberto por toda a cidade, estradas por onde mal se circula, animais em matadouros visíveis da rua, a raiva nas palavras das pessoas... um ar pesado contrariado pela hospitalidade extrema para comigo, pelo interesse pela minha visita e pelo meu país, pela genuína bondade com que espontaneamente me abordavam na rua, com que me ofereceram de comer e beber, com que recusavam qualquer gorjeta.
Deixo Ramallah, passo o check-point, chego a Jerusalém, depois a Telavive onde me atiro ao mar e onde passo horas de descompressão a olhar para as mesmas estrelas que tinha visto em Jenin numa noite quente do Ramadão. Na minha cabeça as palavras do realizador Amos Gitai a propósito da morte de Mer-Khamis: “Existem pessoas como Juliano, que são radicais, e usam os seus próprios corpos para servir como uma ponte sobre o abismo do ódio. Ele é maior que a vida".
Na Terra de Israel a cabeça e o coração passam os dias em combates perpétuos de esgrima. Ferem-se e regeneram-se. Lembram-se e esquecem-se. Ficcionalizam e de seguida embatem com o Real, para logo criarem uma outra ficção... História por cima de história, raspada e logo rescrita para ser novamente desmoronada, povo por cima de povo por cima de povo, tudo a deixar rasto, nada desaparece... Tudo "maior que a vida" nesta Terra-Palimpsesto e eu, turista que nunca fui, também eu-palimpsesto.
Pedro Penim
Telavive, 23 de Agosto de 2012