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Será talvez um cliché dizer que Telavive é uma cidade de excessos. Mas se se fizer a ressalva de que o excesso não tem de ser necessariamente entendido como pejorativo, começamos a afastar-nos do cliché e a aproximar-nos de uma possível descrição mais justa para esta cidade.
Há de facto, para o bem e para o mal, uma cultura do demasiado, do exagero, do sobejo... Serão os israelitas os primeiros a dizê-lo: como é excessivo o seu povo, como falam alto, como discutem, como se emocionam, como vivem intensamente o seu cosmopolitanismo. O israelita já deixou há muito um outro cliché que se usava para definir o seu perfil e a sua identidade: o do Sabra, o fruto do cacto espinhoso por fora mas doce por dentro, o perfeito kibbutznik reinando espartano na sua imensa teimosia e diligência. E a "culpa" dessa mutação deve-se em muito a uma redefinição do carácter do habitante de Telavive, que consegue ultrapassar (lá está!) em excesso de velocidade o comportamento excessivo do seu compatriota médio.
Isto tudo porque se já fiz saber nestas crónicas da boa vida dos cães de Telavive, falo agora da boa vida dos bebés. Dos imensos bebés, dos "excessivos" bebés que enchem toda a cidade. Vive-se em Telavive, e em todo o país, uma cultura de reprodução, que faz jus à grande preocupação judaica com a descendência e com a família. Por todo o lado há grávidas e bebés.
Esta semana passei o jantar de Shabat numa pool party no Moshav de Beit Herut, perto de Netanya. Nesta festa organizada pelo meu amigo Oren a propósito do seu dia de anos fiquei a saber da história do seu irmão Matan (a partir daqui uso nomes fictícios para proteger a intimidade das pessoas em causa) e do seu companheiro Boaz e do processo de paternidade conjunta em que ambos embarcaram para trazer à vida o seu filho, o bebé Ofer. Sim, mais um bebé. Um bebé que veio da Índia, onde uma senhora "barriga de alguer" carregou durante nove meses o produto da mistura do esperma de ambos os pais, com o óvulo de uma doadora Ucraniana. Confuso? Aqui em Israel parece que não.
Parece que cada vez se encontra mais generalizada esta prática entre os casais gays israelitas, que vêem neste avanço tecnológico a hipótese de cumprir o sonho que a natureza nega, o da procriação.
Apesar da aparente lisura o acto é tudo menos simples. O processo levanta muitas dúvidas éticas, que incluem a exploração da dadora de óvulos e da mãe de aluguer que são de países em vias de desenvolvimento, o facto de só os casais com rendimentos elevados poderem ter acesso a este "serviço", e, no fundo a justificação para as minhas aspas anteriores: a banalização de um gesto ainda considerado milagroso e sagrado, a transformação de uma dádiva da natureza numa mercadoria. As sobrancelhas das mais diversas origens ideológicas levantam-se perante tais assunções...
Procurar uma barriga de aluguer não será nunca uma decisão fácil, tendo em conta o ónus ético, financeiro e emocional que um processo destes implica e por isso muitos perguntarão o porquê de toda esta complicação quando se pode recorrer à adopção? Outros inquirirão sobre as razões que levam alguns casais gays a desejarem tanto caber na fotografia heteronormativa, agora que têm uma aceitação generalizada aqui. Outros pensarão no momento eticamente discutível em que se escolhe uma dadora de óvulos de raça branca, para aproximar o mais possível esta über ficção a um processo natural. Dúvidas há muitas mais, respostas nenhuma. O desejo de procriar é um atributo fundamental da raça humana, por outro lado controlar desejos também o é.
O que sei e vi é que Matan e Boaz trouxeram Ofer à vida, um saudável bebé israelita rodeado de amor. Na mesma festa conheci Yael e Lior, ela lésbica e ele gay que em conjunto são pais de Nir. Oren, o aniversariante, e o seu parceiro Itamar tentam há uns meses ter um filho em conjunto com o casal Hannah e Ella. No dia a seguir à festa o meu amigo Amir contou-me num almoço, e para minha surpresa, que ele e o seu companheiro Yossi estão também à espera de um bebé "da Índia". Confuso? Talvez sim. Mas é um retrato fiel da abertura e da pluralidade da "excessiva" e avançada sociedade israelita.
Eu nunca tinha estado numa festa de anos de um adulto com tantas crianças, coisa cada vez mais frequente em Israel e mais rara em Portugal onde, sem surpresas, o Parlamento chumbou recentemente o direito dos casais homossexuais à procriação medicamente assistida. Não se pense que aqui é legal. É por não ser que surgem estas reacções ao sistema, onde por processos enviesados se concretizam sonhos e direitos.
A esperança é que ainda recentemente o Supremo Tribunal de Justiça de Israel recomendou a abertura das barrigas de aluguer a casais homossexuais numa tentativa de adequar a lei à prática cada vez mais comum e democratizá-la a casais sem tantos recursos financeiros.
Por outro lado a actual composição bastante conservadora do Parlamento israelita, o Knesset, não será a mais favorável à aprovação de tais leis (o casamento gay é também ainda ilegal, podendo os casais casar no estrangeiro sendo depois reconhecido a legalidade do acto em território israelita).
Mas perante a complexidade e o excesso (de questões, de temas de conversa) que tudo isto suscita fico com a imagem de um fim de tarde num moshav, entre fraldas e carrinhos de bebé, e entre mentes excessivamente (no melhor sentido possível) abertas às novas questões que a reorganização social e cultural vai pondo.
Pedro Penim
Telavive, 9 de Agosto de 2012