Entrevista Embaixador Dor Shapira

Entrevista Embaixador Dor Shapira

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    ​Um ano depois de assumir o cargo de embaixador de Israel em Portugal, Dor Shapira fala ao DN sobre as áreas em que os nossos dois países podem cooperar mais, do turismo à cibersegurança. Além do conflito com os palestinianos, aborda ainda os Acordos de Abraão, que ajudou a negociar, a guerra da Ucrânia e o esforço de mediação israelita e ainda o perigo do Irão.
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    Dor Shapira Dor Shapira : © Rita Chantre / Global Imagens
     
     

    Está há um ano como embaixador em Portugal. O que o surpreendeu mais e qual foi o maior desafio nestes meses?
    Cheguei há um ano e, na altura, não sabia verdadeiramente o que esperar de Portugal. Porque é diferente de outros países da Europa e dos EUA. Mas fiquei surpreendido, sobretudo pela positiva. Portugal é um país muito interessante, que tem muitas vantagens. É um daqueles países que têm um futuro muito bom pela frente, desde que siga na direção certa. E, como embaixador, vejo muitas oportunidades de trabalhar em conjunto.

    E qual foi o maior desafio? A língua, a forma de ser das pessoas? Os portugueses afinal não são assim tão diferentes dos israelitas...
    Uma das coisas que me surpreendeu foi o quanto somos parecidos. Não sei se é por estarmos perto do mar, se é o tempo, mas somos parecidos em vários sentidos. E penso que é por isso que é tão fácil o contacto entre portugueses e israelitas. Hoje vemos cada vez mais israelitas a vir visitar Portugal e mais portugueses a ir a Israel. Falei com muitos israelitas que vinham cá pela primeira vez e todos me disseram o mesmo: primeiro que se apaixonaram por este país e pelas suas pessoas e, segundo, que se sentiram em casa.

     

    O turismo é uma das áreas em que podemos aprofundar a relação. Quais são as outras?
    O turismo é fundamental. Hoje temos oito voos diretos semanais entre Telavive e Lisboa, na TAP e na El Al. É um recorde. E estão completamente cheios. Infelizmente há muitos mais israelitas a vir a Portugal, gostava que houvesse mais portugueses a ir a Israel. Isso é algo em que vamos trabalhar, para garantir que mais portugueses sabem o que Israel tem para oferecer. Mas mostra que há um enorme interesse dos israelitas por Portugal, do ponto de vista turístico, mas também empresarial. E esse é o segundo aspeto em que tencionamos focar-nos. Israel e Portugal devem sentar-se juntos, nós podemos trazer a nossa experiência, mas também há muita coisa de Portugal que podemos usar. Dou-lhe dois exemplos. Nós temos muita experiência, que o nosso ambiente geopolítico nos obrigou a desenvolver, no que diz respeito à gestão da água. Em Portugal, bem como noutros países da Europa, este é um dos principais problemas. Por outro lado, vocês estão muito desenvolvidos no que se chama "tecnologia azul" [proteção e sustentabilidade dos mares e oceanos]. E essa é uma área em que estamos empenhados a aprender mais. A cibersegurança é outra área em que tendemos a trabalhar bastante com Portugal. A cibersegurança não tem fronteiras. Nós também temos problemas nesse campo, também sofremos ataques. Na área da segurança, defesa, terrorismo, ou ataques criminosos. O problema é o mesmo. Isso é algo em que nós, países ocidentais democráticos, e países que têm a mesma escola de pensamento, temos de trabalhar em conjunto, tanto a nível governamental, como empresarial.
     
    Um momento de tensão neste ano em que tem sido embaixador em Portugal teve a ver com a atribuição de passaportes a personalidade judias, como Roman Abramovich. Foram apenas alguns maus exemplos numa coisa boa como a nova Lei da Nacionalidade?
    Como representante de um governo estrangeiro, não posso criticar ou dar conselhos a outro país sobre as suas leis. Não sei o que aconteceu exatamente. Há uma investigação em curso, estou certo de que a polícia e o departamento de Justiça farão o seu trabalho para apurar se algo foi feito de forma errada. Mas direi duas coisas sobre a Lei da Nacionalidade. Primeiro, penso que foi muito positiva para as relações bilaterais entre Israel e Portugal. Até há uns dez anos, os israelitas não sabiam muito sobre Portugal, mas hoje é um destino muito interessante para turistas, negócios e investimentos israelitas. E isso aconteceu sobretudo graças à Lei da Nacionalidade, que tornou Portugal num destino popular em Israel. E também foi bom para Portugal, porque há mais investidores a chegar. E, em segundo lugar, graças à lei a comunidade judaica em Portugal está a crescer e a ficar mais forte e isso é muito importante numa comunidade que há 500 anos quase desapareceu. Isto é importante para os portugueses. E há cada vez mais organizações dentro da comunidade judaica a surgir graças a esta lei. Por exemplo o Museu Judaico de Lisboa, que vai ser construído, ou o Museu do Holocausto no Porto. Temos de nos focar nas coisas boas desta lei.
     
    Os portugueses estão a aprender mais sobre as suas próprias raízes...
    Estão a aprender mais sobre Israel e também sobre si próprios. Viajo muito por Portugal e por onde passo as pessoas falam comigo sobre a sua herança judaica. Não querem voltar ao judaísmo, são cristãos, mas é importante para eles saber mais sobre a história da comunidade judaica em Portugal, sobre o que aconteceu há 500 anos e o que podemos aprender daí para o futuro.
    Israel vai, em novembro, para as quintas eleições em 3 anos. Como é que esta instabilidade se reflete no seu trabalho como embaixador? A política externa acaba por mudar pouco consoante o governo?
    Claro que as eleições afetam tudo e gostaríamos de ter menos e governos mais estáveis. Nos seus 75 anos de existência, Israel nunca teve um governo maioritário como têm agora em Portugal. Espero que um dia tenhamos. Temos um sistema político diferente. Mas se olhar para a política externa de Israel, não muda drasticamente de um governo para o outro. As eleições acontecem, mas não mudam o rumo do meu trabalho aqui em Portugal. Na promoção de Israel a nível político, empresarial, de pessoa para pessoa. Tudo isso acontece com ou sem eleições.
    Antes de vir para Portugal trabalhou na equipa que negociou os Acordos de Abraão. É um caminho que Israel quer seguir, o da normalização de relações com os países muçulmanos?
    Na semana passada passaram dois anos da assinatura dos Acordos de Abraão, os acordos de paz entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, a que mais tarde Marrocos também aderiu e o Sudão iniciou o processo. Quando se olha para os últimos dois anos, vê-se uma mudança estratégica no Médio Oriente. As pessoas acham que os acordos são assinados apenas pelos líderes, mas são para as pessoas. Os líderes que assinaram este acordo por Israel e pelos EUA [Netanyahu e Trump] já nem estão nos cargos. Apesar disso os acordos estão a ser um sucesso. Hoje as trocas comerciais entre Israel e os Emirados são de quase dois mil milhões de dólares/ano. Temos dois voos diretos entre Israel e o Dubai e Abu Dhabi todos os dias. Com muitos turistas israelitas a visitar os Emirados e turistas dos países do Golfo a visitar Israel. Israel e Marrocos assinaram há uns meses um acordo de defesa, algo impensável há dois anos. Desde os Acordos de Abraão, já assinámos mais de 50 acordos nas áreas das ciências, da saúde, do turismo, etc. Esta é uma mensagem forte para todos os países que ainda não se juntaram a este círculo de paz e que, espero, percebam que, no final de contas, é bom para os seus próprios interesses assinar os acordos. Espero que muitos outros se juntem. A lista de países que não têm relações diplomáticas com Israel está a encolher. É ótimo. Espero que os restantes se juntem a nós. É bom para eles, bom para nós e bom para o mundo.
     
    O conflito israelo-palestiniano já não é um entrave às relações dos países muçulmanos com Israel?
    Os Acordos de Abraão provaram que o conflito entre Israel e os palestinianos tem de ser resolvido, mas que essa não deve ser a condição para outros países promoverem relações bilaterais com Israel. Temos de o resolver. É o meu primeiro interesse. É a minha vida e as dos meus filhos que estão em jogo. Mas não deve ser condição para promover a paz no Médio Oriente.
     
    Ainda sobre as relações com países muçulmanos, também com a Turquia tem havido uma reaproximação nestes meses?
    A Turquia é diferente. Israel e a Turquia têm estado em paz há muitos anos e as relações entre os dois países eram bastante boas. Nos últimos anos houve uma degradação por motivos políticos vários, mas nos últimos meses as coisas parecem ter voltado ao normal. E o primeiro-ministro Lapid vai mesmo encontrar-se com o presidente Erdogan à margem da Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque. Estamos back on business com a Turquia e espero que assim permaneça, porque a Turquia é um aliado muito importante para nós. E penso que nós também somos um aliado importante para a Turquia.
     
    Em agosto assistimos a uma operação israelita contra a Jihad Islâmica na Faixa de Gaza. Antes houve uma série de ataques em Israel. A paz com os palestinianos parece continuar longe. O que falta para se resolver o conflito? O facto de não haver uma liderança coesa do lado palestiniano torna mais difícil negociar?
    Hoje o maior problema entre israelitas e palestinianos é a falta de confiança. E é algo que temos de reconstruir. É o que o meu governo tem tentado fazer nos últimos meses: reconstruir a confiança e dar aos palestinianos meios para se ajudarem a si mesmos. Temos de avançar passo a passo. Já tentámos no passado avançar rapidamente e não funcionou. Para criar confiança temos de agir passo a passo. O problema, como disse, é que é muito mais difícil fazer isto quando em Gaza temos uma organização terrorista que assumiu o poder e que não quer construir confiança, não quer falar connosco, só tem um objetivo: eliminar o Estado Judaico do mapa. Mas como disse o presidente [Shimon] Peres, não nos podemos dar ao luxo de desistir. Os palestinianos vão ter de chegar a um ponto em que terão de decidir quem querem a liderá-los. E que caminho querem seguir - o da luta, do derramamento de sangue, da guerra, dos rockets contra Israel, dos ataques terroristas, ou o regresso às negociações connosco para encontrar soluções. Acho que estão a chegar a esse ponto e lá estaremos para nos sentarmos com eles. Mas se for preciso iremos lutar com todas as nossas forças para garantir que não serão organizações terroristas a decidir o que se passa em Israel e a magoar civis israelitas.
    Alguns dos ataques em Israel foram feitos por árabes israelitas. Isso torna ainda mais difícil manter o equilíbrio com estes 20% da população?
    Temos cerca de 20% de cidadãos árabes que vivem em Israel, têm cidadania israelita e fazem parte da sociedade. Os últimos governos têm procurado garantir que se sentem parte da sociedade israelita, que estão integrados. Claro que há elementos extremistas que temos de combater. E temos de o fazer com os líderes da comunidade árabe. Mas, no fim de contas, são parte do nosso país - temos de os aceitar e trabalhar com eles.
    Sendo cidadãos israelitas de pleno direito, porque sentem a necessidade de terem partidos árabes no Parlamento? Sentem que os outros partidos não os representam?
    O nosso sistema político está estruturado de forma que as minorias sentem que precisam de ter os seus próprios partidos de modo a ganharem mais para o seu povo no processo político. Não são só os árabes. Os ultraortodoxos têm o seu partido, os religiosos mas não ultraortodoxos também, etc. Há alguns árabes que tentam emergir nos partidos existentes, no Labour, no Meretz, até no Likud. Mas acho que o que aconteceu nas últimas eleições, com os partidos árabes a juntar-se à coligação, foi muito significativo. Temos de ver se é um padrão ou apenas um caso isolado.
    Quanto à guerra na Ucrânia, Israel chegou a tentar mediar entre russos e ucranianos. Como olham agora para o conflito?
    Israel apoia a Ucrânia, sem sombra de dúvida, votámos nesse sentido na ONU, fomos o primeiro país a ter um hospital de campanha na Ucrânia. Temos dado muito apoio ao povo ucraniano, porque acreditamos que está do lado certo. Mas temos uma grande comunidade judaica na Rússia e uma grande comunidade judaica na Ucrânia e temos de garantir que não vão sair prejudicadas desta situação. Nos últimos anos construímos uma relação estratégica e importante com a Rússia. Os russos estão junto à nossa fronteira, na Síria, e isso forçou-nos a construir essa relação estratégica. Por isso o meu anterior primeiro-ministro tentou ser a pessoa que passava mensagens entre os dois lados quando a guerra começou. Em coordenação com os países ocidentais, claro. Infelizmente chegámos a um ponto em que tal não foi possível. Mas esperamos que a guerra chegue ao fim e volte alguma normalidade.
    Com a guerra na Ucrânia a afetar não só as populações no terreno mas também a economia mundial, Israel não deixa de manter o Irão no centro das suas preocupações...
    Não acho que o Irão seja um problema só para Israel, o Irão é um problema para o mundo. Hoje vimos o seu envolvimento em quase tudo o que de mau acontece no mundo - nas organizações terroristas, no Líbano, na Síria, até na venda de drones na guerra entre Rússia e Ucrânia. Isso tem de parar. Outra preocupação, para nós e para qualquer país ocidental, é a sua ambição de chegar à arma nuclear. E o que vemos hoje é que os iranianos estão a adiar as negociações com a UE e os seus aliados. Estão a tentar ganhar tempo e desenvolver entretanto o seu programa nuclear. É um problema, e em determinado momento os P5+1 [os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU - EUA, China, Rússia, Reino Unido e França - + a Alemanha] terão de dizer: "Basta!, as negociações terminaram". Eles estão a levar o seu tempo e isso é muito perigoso. Israel não é contra um acordo com o Irão, somos contra este acordo específico, porque achamos que não atinge os seus objetivos. O acordo deve ser mais forte e a longo prazo, para garantir que os iranianos não terão armas nucleares, nem hoje, nem amanhã, nem daqui a 50 anos. Esta é a primeira prioridade, a segunda é que não recebam dinheiro que acaba por não ir para a ajuda humanitária no interior do Irão, mas sim para apoio a grupos terroristas em todo o mundo. O que nos deve preocupar a todos.
    O presidente iraniano deu uma entrevista ao 60 Minutes...
    E viu o que ele disse? Ficou ali sentado a dizer que não tinha a certeza que o Holocausto tenha acontecido e que precisa de ver mais provas e de ser investigado. Pois eu convido o presidente iraniano a ir comigo a Auschwitz e posso mostrar-lhe o local onde a família dos meus avós perdeu a vida, dando-lhe a grande prova do Holocausto de que ele precisa.
    O que é que o presidente Raisi pretende ao negar o Holocausto?
    É a ideologia dele. Ele acredita mesmo no que diz. Por isso quando me dizem para não os levar tão a sério, eu levo-os muito a sério. Eles acreditam mesmo no que dizem e temos de ter muito cuidado e lidar com isso da melhor maneira que conseguirmos. Porque começa com a negação do Holocausto, mas pode acabar com ações muito mais graves. E aqui gostaria de voltar aos Acordos de Abraão e às mudanças na região. O que o presidente iraniano disse agora surgiu dois dias depois da visita a Israel e ao Yad Vashem, onde depositou uma coroa de flores, do ministro dos Negócios Estrangeiros dos Emirados Árabes Unidos. Este falou da luta contra o antissemitismo e de como uma tragédia como o Holocausto não se pode repetir. Assim vemos a diferença entre um líder dos Emirados, que se juntaram ao círculo da paz, e o líder do Irão, um país que está ligado a tudo o que há de mau no mundo.
    Leia aqui a entrevista na versão digital do Diário de Noticias.