Aloysio Nunes FerreiraMinistro das Relações Exteriores
É por ter apreço especial e respeito profundo pelo Estado de Israel e pelo povo judeu que decidi reagir ao artigo “Antissemitismo à brasileira”, publicado no Correio Braziliense de 20/6/17. Embora inspirado, estou certo, das melhores intenções, o texto contém equívocos que não podem ficar sem resposta. O principal deles é a tese de que haveria uma escalada do antissemitismo no governo, de que seria exemplo o voto brasileiro em uma decisão da Unesco. O artigo considera que o Brasil contestou a soberania israelense sobre Jerusalém Oriental ao votar a favor da decisão.O texto, porém, não trata da soberania, mas da preservação do patrimônio histórico, cultural e religioso da Cidade Velha de Jerusalém, sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos, e inscrita como patrimônio cultural da humanidade por resolução da própria Unesco desde 1981.
A decisão trata, isso sim, do fato de Israel autorizar escavações arqueológicas que podem alterar esse patrimônio e proibir seu acompanhamento técnico pela Unesco, organismo criado exatamente para colaborar com a preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural e religioso. O artigo não menciona que, de acordo com as resoluções da ONU, o status de Jerusalém não está resolvido — posição do Brasil e de dezenas de nações amigas de Israel, inclusive daquelas que votaram contra a decisão. Omite também que foi no governo Temer que o Brasil trabalhou para que o projeto de decisão da Unesco reconhecesse claramente os vínculos históricos das três religiões monoteístas com a Cidade Velha de Jerusalém.
A atuação decidida da delegação brasileira e de outros países afins ajudou a eliminar os aspectos mais problemáticos do projeto. É verdade que o texto final não é perfeito. Por essa razão, a delegação brasileira, em sua explicação de voto, reafirmou que continuará a atuar para que futuros textos sejam totalmente imparciais e tenham caráter técnico de proteção do patrimônio da humanidade, livre de elementos políticos indesejáveis.
O artigo também ignora a posição histórica do Brasil de reconhecer a necessidade da solução de dois Estados para o conflito árabe-israelense e as obrigações que decorrem do direito internacional, inclusive no tocante ao status dos territórios palestinos ocupados. O mais grave e inaceitável na argumentação, porém, é assimilar o voto brasileiro ao antissemitismo e ao antissionismo, numa acusação que é tão despropositada quanto injusta. Por essa lógica, qualquer voto contrário às posições oficiais de Israel seria sinal de antissemitismo. Em 1975, como aponta o artigo, houve de fato o voto a favor da resolução que classificava o sionismo como forma de racismo, erro que foi posteriormente corrigido.
O Brasil de hoje se pauta nessas e em outras questões pelo exame criterioso do direito internacional e pela busca do entendimento e da solução pacífica das controvérsias. Valorizamos a relação com Israel e defendemos o combate ao verdadeiro antissemitismo, o que se manifesta na exclusão e na violência contra judeus, mas para isso não precisamos adotar um alinhamento automático às posições oficiais de nenhum país. Anualmente nos juntamos à condenação ao antissemitismo e outras formas de racismo no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.
O que desejamos é a paz e a prosperidade para Israel, objetivo que depende em grande medida de uma solução política definitiva para o conflito na região. Isso explica nossa defesa da solução de dois Estados (Israel e Palestina) convivendo em paz e segurança, em fronteiras internacionalmente reconhecidas e mutuamente acordadas, com base no direito internacional. E é também por essa razão que não nos furtamos em condenar a violência indiscriminada e os atos terroristas, quaisquer que sejam as motivações.
No Itamaraty, temos orgulho dos atos heroicos dos únicos brasileiros “justos entre as nações”, ambos integrantes do Serviço Exterior Brasileiro: Luiz Martins de Souza Dantas e Aracy Guimarães Rosa. Os dois descumpriram instruções superiores para apoiar a fuga de judeus da Europa, colocando seu dever para com a humanidade acima das conveniências. Esses exemplos de coragem inspiram hoje os esforços brasileiros em prol da superação do verdadeiro antissemitismo, que deve ser combatido com as armas da tolerância, do diálogo e da justiça.
Esse é um compromisso permanente de toda a sociedade brasileira que a política externa continuará refletindo e projetando por meio de posições equilibradas, ancoradas no direito internacional e na melhor tradição humanista do Itamaraty.